“Os problemas sociais de hoje refletem muito o passado esclavagista, escravocrata”

AnaBárbara Pedrosa
9 min readMar 6, 2019

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Durante anos, Itamar Vieira Junior teve a ideia do tema do universo rural brasileiro e da exploração das famílias cativas, já após a proibição da escravatura, para escrever um livro. Inicialmente pensado como um livro de história, veio posteriormente a solidificar-se no romance Torto Arado [resenha aqui], agora publicado em Portugal pela LeYa. Falei com Itamar assim que chegou a Portugal.

*Entrevista inicialmente publicada em Esquerda.net

Ana Bárbara Pedrosa (ABP): Queria começar pelo livro que te trouxe a Portugal. De que trata, como o escreveste?

Itamar Vieira Junior (IVJ): O livro Torto Arado é uma obra que trata de um grupo de trabalhadores que vivem em regime de servidão numa fazenda no sertão da Bahia. Conta a história de duas protagonistas, mas a gente fica sabendo um pouco do que aconteceu nas gerações anteriores. Essas populações, com o fim da escravidão, ficaram sujeitas à ausência de políticas públicas de reparação e permaneceram morando nas propriedades. Não tinham para onde ir quando a escravidão foi abolida. Permaneceram ali, as relações de trabalho foram mudando ao longo do tempo. No livro, o olhar das protagonistas mostra isso, cada uma tem a sua visão sobre esse universo de trabalho. E formas diferententes de tentar mudá-lo.

ABP: Quando te surgiu a história? E como?

IVJ: Há muito tempo. Comecei a escrever livro muito jovem. Foi mudando ao longo do tempo. o título foi a única coisa que permaneceu. Tive uma influência das leituras regionalistas dos romances modernistas brasileiras. Grande Sertão Veredas [João Guimarães Rosa, 1956], Tocaia Grande, de Jorge Amado [1984], Rachel de Queiroz, Morte e Vida severina [1955], de João Cabral de Melo Neto… Essas obras me impactaram muito. Isso me influenciou no primeiro momento.

Eu era muito jovem, não tinha noção do problema que o Brasil enfrentava. tanto que, quando pensava na escrita, pensava num livro de história, datado, de época. Enfim, não tinha maturidade e essa obra não foi para a frente, e ainda bem. Essas páginas se perderam e pude reescrever.

Nos últimos 12 anos, fui trabalhar com populações rurais e percebi que pouca coisa havia mudado nessas relações de trabalho, na falta de acesso à terra, na falta de políticas públicas.

ABP: Onde?

IVJ: No interior do nordeste brasileiro. Primeiro, no estado do Maranhão, depois no estado da Bahia.

A Bahia é grande, do tamanho da França, e a gente tem uma série de paisagens diferentes. mas todas sofrem com esse problema fundiário, com essa falta de acesso à terra. Não houve uma reforma agrária efectiva no Brasil em nenhum período da sua história. Isso se repercute ainda hoje, porque o número de conflitos no campo é muito grande.

Não houve uma reforma agrária efectiva no Brasil em nenhum período da sua história.

Essa realidade grita, principalmente quando você está trabalhando com essas pessoas no quotidiano.

Encaro a arte como um meio de levar determinadas histórias para contar isso a uma pessoa de forma literária, que vai conhecer essa história, que acontece e que está oculta. Para muita gente, não são realidade.

ABP: A literatura tem o papel activo na mudança do mundo de dar a conhecer realidades que, sem ela, não seriam vistas?

IVJ: A literatura é uma arte, e ainda bem que nos permite a fruição. Por ser arte, acho que carrega esse sentimento de se debruçar sobre a experiência humana. Observo muito por essa óptica: qualquer obra se debruça sobre a experiência do Homem na Terra, nos seus locais de vida. Acredito que é uma forma de você levar uma mensagem, uma história, para que venha a conhecimento do público. É difícil dissociar o que é político do que é arte. Acho que tudo o que a gente faz está imbuído da nossa essência política. Somos seres políticos. Não gosto de rotular, mas acho que a arte está imbuída do aspecto político.

ABP: Até porque o rótulo parece tornar a arte em panfleto, não é?

IVJ: Exacto. Mas somos seres políticos, a política só se dá entre nós, humanos.

ABP: A nossa existência é política.

IVJ: Isso. Tanto o trabalho como a obra podem ser feitos sozinhos. Eu estava sozinho a fazer o livro. Mas a política, a divulgação, falar sobre o que é, o sentido do texto, só vai ocorrer entre a gente, entre mim e o leitor.

ABP: Como achas que o Brasil vive hoje com o seu passado colonial?

IVJ: Não fez uma revisão da sua História em nenhum período da sua vida recente. É como se o passado colonial estivesse datado e não precisasse mais ser tocado. Sendo que os nossos problemas sociais de hoje refletem muito o nosso passado esclavagista, escravocrata. É impossível dissociar, mas para a maioria das pessoas está dissociada. É uma alienação. a maioria das pessoas nunca se debruçou sobre o assunto, excepto os pesquisadores. Estamos praticando os mesmos erros do passado. A gente tem uma taxa de letalidade da população negra altíssima. Isso reflecte a falta de políticas públicas, de educação, de assistência básica. A maioria dos encarcerados nos presídios brasileiros é negra. Isso não é por acaso. Reflecte um racismo estrutural. A sociedade é parte disso. Não ocorre por acaso. Como nunca revisámos os nossos problemas do passado, estamos a incorrer sempre nos mesmos erros. Enquanto não houver uma ampla política de compensação social, não vamos superar os nossos traumas e os nossos problemas. Dizem respeito ao que ocorreu no Brasil — colónia, ditadura militar.

ABP: Com Bolsonaro, há um grande retrocesso nos direitos sociais e parece querer voltar-se para Casa Grande & Senzala. O teu livro fala de famílias cativas. Achas que o livro abre os olhos para a questão ou nunca sequer estiveram fechados e sempre foi evidente a hierarquia de direitos sociais e económicos?

IVJ: Sempre houve essa evidência, mas as pessoas preferem fingir que não vêem. A questão ocorre de norte a sul do país. Vivo na zona mais pobre do país, com mais conflitos.

ABP: Referes-te à Bahia ou ao nordeste em geral?

IVJ: Ao nordeste em geral. Esse livro retrata a nossa realidade hoje. Gostaria de dizer que essa é uma obra sobre um período da nossa história, datada, que hoje estamos a mudar isso, mas isso não seria verdade. O Brasil de hoje é o Brasil que está no livro. Que ainda mata as pessoas que sonham em se emancipar e pedem por justiça social.

Vale a pena falar do assassinato de Marielle Franco. Marielle, entre muitas bandeiras, queria a regularização fundiária de áreas da zona oeste do Rio de Janeiro. Para populações que vivem lá, de baixa renda, que vivem ameaçadas de serem expulsas pelas milícias, os grupos paramilitares que dominam o Rio de Janeiro e outras partes do país. E há um forte indício de que Marielle foi assassinado por conta dessa bandeira. Os seus prováveis assassinos são milicianos. E esses milicianos têm um amplo apoio do governo Bolsonaro.

Por que digo isso? Durante os últimos 15 anos de vida pública do clã Bolsonaro, foram feitas diversas homenagens a milicianos. Também fizeram a defesa da milícia como forma de segurança nas comunidades. As milícias são máfias, grupos criminosos que exigem dinheiro e matam adversários para que o Estado sejam eles. Eles definem quais são as leis. Para eles, existem a pena de morte, porque matam os adversários políticos.

Falei de Marielle, mas no livro a gente tem uma liderança que tenta mudar o que acontece com os trabalhadores na fazenda Água Negra. A liderança sofre por isso, sofre o impacto dessa tentativa de mudança. E, assim como Marielle, inúmeros outros trabalhadores e lideranças de trabalhadores têm morrido. Não é nenhuma novidade e espanta que aconteça ainda hoje. Ao longo da sua história, o Brasil tem uma série de crimes ligados à sua estrutura fundiária, que tem relação com a opção que o Brasil fez pela propriedade privada.

A grande massa de trabalhadores rurais não tinha possibilidade de adquirir terras e permaneceu como escravos ou em regime de servidão ou noutros sistemas que vieram a substituir o sistema de escravidão. Isso é bem actual.

Em 2017, segundo levantamento dos movimentos sociais, 71 lideranças foram assassinados por conflitos fundiários ou do meio ambiente. A gente não imagina isso em um país civilizado. O que seria isso em Portugal? É uma guerra, mas não declarada

ABP: E com meios muito desiguais. Bolsonaro e afins falam de “mimimis de minorias”. Achas que é uma incapaciade mental e intelectual de analisar a sociedade ou um esforço consciente para manter o privilégio (branco, heterossexual, masculino)?

IVJ: Acho que são as duas coisas. Primeiro, quando a gente fala deles, fala de pessoas com uma incapacidade de compreender, de articular ideias, de ter projeto de país. Existe um pouco de incapacidade educacional mesmo, de compreender a sua vida e o seu entorno. E são porta-vozes de uma classe, de uma elite, que quer manter privilégios. Não se vêem sem esses privilégios.

Uma das grandes insatisfações com o governo Dilma aconteceu quando ela aprovou uma emenda à Constituição, dando todos os direitos aos trabalhadores domésticos — férias, horário de trabalho, salário mínimo, 13º. Dilma enfrentou uma revolta incrível por causa disso. A classe média não consegue tirar um copo de água da geladeira [frigorífico] sem pedir a alguém.

ABP: Até é chocante ver que, no Brasil, qualquer prédio tem pessoas que trabalham em elevadores.

IVJ: Apertando o botão. Isso está impresso em tudo. O que falta é as pessoas terem uma visão crítica do que está ao seu redor. O mercado imobiliário, por exemplo: os apartamentos da década de 60/70, para cá. Todos têm um quarto chamado “dependência de empregada”, anexo à cozinha, com banheiro à parte. É uma coisa que remonta à senzala, numa fazenda como essa. Estamos falando de um Brasil que não retirou essa sua carapaça de lugar atrasado, colonial, que ainda pensa dessa forma.

ABP: Falávamos há pouco de a vida ser política. Imiscui-se no quotidiano das pessoas. Num país com tanta clivagem, porque é que a literatura brasileira se tem permitido afundar-se na auto-ficção?

IVJ: No Brasil, geralmente os escritores são brancos que tiveram boas oportunidades de estudar, que estão em ambientes onde esses problemas não chegam ou estão escamoteados.

Há pesquisas no Brasil que mostram que 80% dos romances publicados nos últimos 15 anos são de homens brancos da classe média urbana. Escrevem livros que versam sobre os seus problemas.

Falta na nossa educação um aprofundamento da nossa questão social. E ela atravessa-nos de todas as formas. A falta dessa consciência permite que os escritores falem de si e de seu entorno.

A literatura é esse desafio, o que nos incomoda. É isso que tem chance de virar matéria de uma boa história. É sobre esse incómodo que gostaria que os escritores escrevesse. É fácil você falar sobre si, mas difícil olhar com empatia sobre o outro, descobrir o que nos toca, o que é universal entre mim, você, a Bibiana, a Belonísia [personagens de Torto Arado] e os trabalhadores rurais, urbanos, operários.

ABP: E a auto-ficção não permite essa universalidade?

IVJ: Não.

ABP: Achas que menoriza a literatura, que a transforma em passerelle de egos?

IVJ: Acredito que sim. Existem grandes romances brasileiros que classificaria como auto-ficção. A paixão segundo G.H. [1964] tem muito da vida e da condição da Clarice Lispector como uma mulher branca da classe média, mas não deixa de colocar problemas existenciais que são universais. Só falar de si, e isso parece ser a regra no Brasil, vira uma passarela de egos. É como se só tivéssemos capacidade de falar do nosso próprio umbigo.

As grandes obras da literatura estão voltadas para fora. Saramago, por exemplo — a diversidade de temas, todos explorando como ninguém a condição humana. Tem desde o trabalhador no campo do Alentejo até um romance história como A Viagem do Elefante [2008], O Ano da Morte de Ricardo Reis [1984]. Essa capacidade que ele teve de criar uma obra rica e diversificada, um universo muito próprio, é a alma da literatura. Se só falamos de nós mesmos, estamos fazendo psicologia barata, escrevendo diários.

ABP: Com técnica literária.

IVJ: Sim.

ABP: Neste contexto em que a auto-ficção tem tido um papel preponderante, que autores no Brasil vão no sentido contrário, se voltam para o mundo, são combativos?

IVJ: A Conceição Evaristo, uma autora de 70 anos, que conseguiu publicar muito tarde, pela vida difícil que teve, por ser mulher, por ser mulher negra, tem uma obra voltada para as questões que lhe são particulares, que fazem parte do seu entorno. O Franklin Carvalho, um autor recente, premiado, tem um trabalho belíssimo sobre o sertão do nordeste, que tangencia um pouco com o que está aqui. O Estevão Azevedo tem um romance sobre mineração, que também se passa no nordeste brasileiro.

ABP: O que andas a ler?

IVJ: Tenho lido muita coisa que não foi publicada, que as pessoas me dão para ler. Mas fiz ma leitura muito interessada no final do ano, que foi Lincoln no limbo, de George Saunders. Venceu o Man Booker Prize [2017], e conta a história de Lincoln e do seu filho que morreu. Ele embala o filho no cemitério, é narrado por fantasmas que moram no cemitério.

Recentemente, li João Pinto Coelho. Tenho ainda uma pilha de livros de autores portugueses que tenho lá para conhecer: Dulce Maria Cardoso, Ana Margarida de Carvalho.

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